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O meu olhar só viu heróis
Nunca aqueles dois amigos esqueceram o início de tarde soalheiro do mês de maio que estava prestes a terminar. Fora, sem dúvida, uma tarde diferente das outras. Uma tarde inesquecível. Uma tarde a recordar. Para toda a vida…
O mês de abril só podia querer esconder-se num buraco, de tão fustigante que tinha sido. “Em abril, águas mil” e, de facto, a chuva tinha causado várias cheias no Algarve. Apesar de naquele dia estar a chover, César saiu de casa, sempre com a boa disposição do costume, por volta das duas da tarde, os lábios aproximando-se um do outro para fazer o assobio de sempre. Casaco de cabedal por baixo de impermeável amarelo, brinco na orelha e guarda-chuva. Quem o imitou, mesmo morando na outra ponta da cidade, foi Miguel, que colocando levemente o seu chapéu de aba larga, de uma maneira quase antiquada, seguiu também o caminho para a Universidade.
Naquele mesmo dia, na cidade de Faro havia uma grande azáfama. Um acidente mesmo à porta da Universidade impedia não só professores, mas também alunos, de prosseguir marcha, estacionar e ir para as aulas.
Chegados ao Campus da Penha, Miguel Cardoso e César Rodrigues, os dois amigos inseparáveis e colegas de curso, encontraram-se logo e deram um aperto de mão.
- Como é que é Miguel? Tudo numa boa?
- Tudo numa boa César! Vamos entrar? Já passa da hora…
- Vamo’ a eso! – gracejou César, com sotaque brasileiro, como fazia sempre. Gracejar era a sua área de eleição.
Assim que entraram na sala, tomaram os seus lugares habituais. O professor retomou o que estava a dizer depois de eles se sentarem.
- Ah, ainda bem que chegaram. Estava eu a dizer qual era o vosso trabalho de projecto final, está claro. Bem, então anotem porque o mote para o trabalho é: viagem com uma pessoa que não conheçam!
Foi nesta altura que os dois amigos ficaram de queixo caído, pois não perceberam absolutamente nada. O que quereria dizer o professor com aquilo?
- Mas, professor… O que quer isso dizer? – perguntou o Miguel.
- O tema está bem explícito, senhor Cardoso. Agora escolha um par para fazer o trabalho e pense bem no tema…
- César, vamos fazer o trabalho os dois?
- Por mim fazemos, mas não entendi o que o ‘stor quis dizer com aquilo.
- Havemos de entender, vais ver.
- Claro, mano. A gente arranja-se. – César gracejou mais uma vez.
Logo no primeiro dia do mês de maio, o sol apareceu e fez sorrir muitas pessoas que andavam deprimidas por causa da chuva.
Mais um dia de aulas e César e Miguel sem saber o que fazer.
- Como vamos viajar com alguém que não conhecemos? – perguntou o Miguel.
César respondeu da maneira que só ele sabia.
- ‘Bora perguntar à miúda mais gira aqui do Campus, a Sofia, para fazer uma viagem connosco? Aposto que não consegues…
- Consigo, mas vai tu primeiro!
- Está bem. Vê e aprende caro amigo.
Nesse momento, César foi ao encontro de Sofia.
- Oi Sofia, queres fazer uma viagem comigo?
- Mas achas que eu alguma vez ia querer andar contigo? Tu a mim não me enganas, eu já sei o que tu queres!
Depois disto César riu-se e, apesar dos abdominais começarem a doer-lhe, não conseguiu parar. Seguiu-se a vez do Miguel.
- Agora tenta tu. – disse-lhe César
Quando o amigo lho disse, não hesitou, e foi ter com a rapariga.
- Ei, Sofia, e comigo, queres viajar?
A resposta apanhou Miguel completamente de surpresa:
- Porque não viajam com a minha avó? Ela sempre está mais sozinha do que eu! – graceja.
César ficou a rir-se da situação, mas Miguel pôs-se a pensar e eis que lhe surgiu uma ideia.
- César, já sei o que o professor quis dizer com aquilo! Amanhã falamos com a Sofia!
No dia seguinte, no intervalo, reencontraram-se.
- Sofia! – disse o Miguel
- Eu já não disse que não queria nada com vocês?
- Sim, mas… Não disseste que tinhas uma avó?
- Sim, tenho, e depois?
- Podemos falar com ela?
- Porquê?
- Não disseste ontem que ela precisava de companhia?
- Sim. E são vocês que lhe vão dar companhia?
- É para um trabalho, precisamos de lhe fazer umas perguntas.
- Está bem, vocês são chatos, caramba! Pronto, então encontramo-nos depois das aulas ao pé do portão.
- Combinado! – disseram os dois em uníssono.
Como combinado, e depois das aulas, os três foram a casa da avó de Sofia. Bateram à porta, ela abriu-se passado algum tempo e do outro lado surgiu a pacata figura de uma senhora dos seus oitenta anos, que coxeava e usava uma bengala.
Assim que ela deu ordem, os três jovens entraram na humilde casa caiada de branco, sentaram-se no sofá e expuseram a situação.
- Nós viemos aqui porque temos de fazer um trabalho para a faculdade que tem como tema “Viagem com uma pessoa desconhecida” e numa brincadeira com a sua neta, lembrei-me de si, visto que ela disse que tinha uma avó que estava sozinha.
- E fizeram muito bem… – respondeu Gabriela – Sabem, hoje em dia há muitas velhotas e velhotes sozinhos como eu. Eu sei que tenho a minha neta, mas ela anda sempre atarefada com os estudos. E se ela não me viesse visitar, não sei não. Mas deixemo-nos de coisas tristes e vamos ao que interessa. Vocês vieram para fazer uma verdadeira viagem no tempo. Por isso, preparem os vossos gravadores, que já vi que trouxeram, e oiçam-me com atenção.
- Muito bem, somos todos ouvidos! – respondeu César.
- Então, é assim: existe uma razão para eu estar tão triste, deprimida e solitária. Isto passou-se há muitos anos, há cerca de cinquenta e poucos. Naquela altura eu tinha vinte e três anos. O meu marido fora chamado para a guerra do Ultramar, depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório. Naquela altura, na década de sessenta, como vocês devem saber, havia uma guerra entre Portugal e as colónias portuguesas. Eu e o Henrique, era assim que ele se chamava, tínhamos acabado de casar, quando ele foi chamado. Eu sonhava em ter filhos com ele, esse objetivo foi cumprido, porque entretanto fiquei grávida de gémeos e um mês antes de ele partir eu tive os meus dois filhos, Irene e Xavier. O outro meu grande objetivo era que o Henrique estivesse presente, mas acontece que… - neste momento Gabriela deixou escapar uma lágrima, que lhe rolou pelo rosto abaixo e foi até aos lábios.
- Eu compreendo avó… - disse Sofia – Se não quiseres continuar, não digas mais nada.
- Não, deixa estar, eu continuo – a avó fez um ligeiro gesto com o braço e recompôs-se – Bom… desculpem… O que aconteceu foi que ele não voltou e isso custou-me muito. Mais tarde recebi uma carta de Moçambique a dizer que ele não sobrevivera. Fiquei desgostosa, revoltada, triste, uma série de sentimentos me assolavam nesse momento. Mas prometi a mim mesma que não desistiria e que cuidaria dos meus dois únicos filhos, sozinha. Os anos foram passando e o Xavier e a Irene cresceram. O Xavier, como era bastante solidário, tirou o curso de professor e decidiu ir para África dar aulas e ajudar os mais carenciados. Já a Irene casou-se e teve a minha neta Sofia e o meu neto Bruno. A Sofia é a mais nova e está a estudar aqui, como vocês sabem e o Bruno, o mais velho, emigrou para a Suécia. Dizia que lá é que ia ter uma vida digna, que aqui em Portugal não conseguia fazer nada da vida... A nossa relação nunca foi muito boa e ele dizia que eu era muito chata. Nunca teve muita paciência para mim. Mas o que se há de fazer? Ele seguiu com a vida dele…
- E em relação ao seu filho Xavier, ele também se casou lá em África? – perguntou César
- Bem, em relação ao Xavier… ele… foi o meu segundo desgosto.
- Ele… - ainda tentou dizer Miguel.
- Sim, ele morreu… Parece que houve um surto muito grande de tuberculose na região onde ele estava e… ele não resistiu… Nessa altura os meios não eram tão eficazes, não sei. Foi mais um grande desgosto. E nessa altura tive de ter muita força, muita mesmo. Concentrei-me nas coisas pequenas da vida e pedi a Deus que não me levasse mais ninguém.
- E em relação ao Bruno, ele tem-lhe telefonado?
- Não, não tem. Como já vos disse a minha relação com ele nunca foi boa. Desde que ele se foi embora senti-me abandonada. Se não fossem as visitas da minha filha e da minha neta, não sei como seria… Se calhar já tinha morrido de solidão… E aqui está. É esta a minha história. Espero que tenham desfrutado desta viagem no tempo, esta viagem à minha vida, aos anos que já passaram e que não voltam mais…
- Muito obrigado, Dona Gabriela. Sabemos que é uma história triste mas não desanime, pode sempre contar com a nossa ajuda e com a ajuda da sua neta. Se precisar de alguma coisa já sabe, estamos cá é para isso…
- Muito obrigado, meus filhos, sabem o que vos digo com muita sinceridade? Digo-vos que o meu olhar só viu heróis: em primeiro lugar, o meu marido que foi um grande guerreiro. Em segundo, o meu filho que sempre ajudou os outros, mas acabou por morrer injustamente. E em terceiro vocês, que mesmo estudando e tendo a vossa vida ocupada, lembraram-se de mim, uma pobre velha, e acabaram ouvindo uma história e fazendo-me companhia. Que maravilha, ein?
- É verdade, muito mas mesmo muito obrigado, Dona Gabriela. – ao dizer isto, Miguel Cardoso parou o gravador e guardou a conversa no telemóvel. O trabalho estava feito.
Ao sair para a rua, os três amigos encontram um rapaz com um ramo de flores, bastante nervoso.
- Mano? – diz Sofia, incrédula.
- Estou muito arrependido, Sofia… – é Bruno. Este não consegue conter as lágrimas, sentindo um misto de tristeza, arrependimento e vergonha.
De repente, e sem que ninguém o esperasse, César disse a coisa mais acertada que alguma vez se lembrara:
- Aqui está o herói que faltava…
David Santos
Como prémio, foi oferecido o livro intitulado "Surpreendente!" de de Maurício Gomyde.
Este título obteve o Prémio Identidade Literária / Autor Destaque de 2015.
Segue-se a sinopse:
"Quando Pedro era adolescente foi-lhe diagnosticada uma doença que o faria perder por completo a visão. No entanto, a doença estagnou de forma inexplicável, permitindo que Pedro se dedicasse ao cinema, a sua grande paixão. Entre mil afazeres (a gestão de um clube de vídeo e os planos para o próximo filme), Pedro tenta fugir aos problemas da vida. Para completar a expectativa de um futuro brilhante conhece Cristal, uma rapariga de cabelos ruivos.
Mas a vida é muito diferente dos filmes e os problemas acabam por surgir. Atormentado por um segredo, Pedro parte com os amigos numa aventura que se desenrola ao sabor da criatividade, com as câmaras a captar todos os momentos, tornando-os eternos. Pedro sabe que esta pode ser a sua última oportunidade para realizar o filme perfeito - e ter a vida que sempre desejou."
fonte: https://www.wook.pt/livro/surpreendente--mauricio-gomyde/18501426
Análises criticas:
http://nasuaestanteblog.blogspot.pt/2015/10/resenha-surpreendente.html
http://trechosdelivros.com/resenha-surpreendente-de-mauricio-gomyde/
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