quinta-feira, 11 de maio de 2023

Reescrever os clássicos

 Reescrever os clássicos

Não me tirem a Enid Blyton

Enid Blyton

Para quem vivia nos anos 60 em Portugal – um Portugal “amordaçado” – e pior numa vila no sul onde não se passava nada, Enid Blyton “salvou” a minha infância e pré adolescência. Dois rapazes e duas raparigas - uma delas que gostaria de ser rapaz – quem é que não gostaria de ser rapaz naquela altura? – Viviam aventuras extraordinárias sempre que estavam de férias. E, para além disso, tinham um cão espetacular, o Tim, comiam scones, bebiam chá, faziam picnics. Eram bons alunos – tinham que ser para ir passar as férias com o tio Alberto. Depois havia um colégio em Londres onde estavam as gémeas O’Sullivan e um colégio das 4 torres na Cornualha que me fizeram ter vontade de andar num colégio interno. Devia ser mais giro do que andar no colégio da D. Arlinda em Loulé. Havia livros de Mistério onde havia um Frederico gordinho, havia outros que tinham uma catatua Didi, havia histórias no circo, havia “Os Sete” com um clube que tinha senhas para se poder entrar. 

Dizem, agora, que a senhora era racista, misógina e não sei o quê mais - porque não se pode dizer/escrever gordo, feio, judeu, cigano ou gay … 

Enid Blyton viveu entre 1897 e 1968. Se ela escreveu que a personagem “George” - a Zé dos livros dos Cinco em português -“ela tem de aprender que nunca será tão boa como um rapaz real”, ela tinha toda a razão. Nos anos 20 do século XX as raparigas não conseguiam fazer nada do que os rapazes faziam. As mulheres eram donas de casa nos livros dos Cinco. E não eram? Os jovens diziam que os pretos eram maus? Não diziam? Escrevia-se à luz do que se fazia na época. Vão mudar? E as pessoas vão ficar a pensar o quê? Que afinal no início do século 20 as pessoas já eram todas politicamente corretas? Não eram. Ela utilizava a palavra “gay”? Claro que sim. Gay significa "alegre", "jovial" originariamente, a palavra não tinha conotação sexual, era usada para designar uma pessoa espontânea, alegre, feliz, que era como a autora designava os Cinco. A literatura inglesa e americana desta época não utilizava a palavra “gay” com a conotação de “homossexual” que lhe damos hoje.

Não devemos adaptar as obras às sensibilidades de hoje se as obras não são escritas hoje. Não podemos pôr um autor dos anos 20 do século XX nos anos 20 do século XXI. Estamos a desrespeitar o autor. Como diz Pilar del Rio "… é um desrespeito pelo autor, também com os leitores considerados incapazes de entender as obras literárias que foram deixadas para ser entendidas na integridade".

Esquecem-se que Enid Blyton, tal como Agatha Christie ou Roal Dahl, criaram gerações de leitores! Não me parece que os jovens que os leram se tivessem tornado homens e mulheres com comportamentos inaceitáveis.

Li todos os livros da Enid Blyton – os que havia em Portugal - e de Agatha Christie – especialmente os de Poirot e não sou nem misógina, nem racista, nem xenófoba, antes pelo contrário, sou e sempre fui a favor dos direitos das mulheres e pela igualdade de oportunidades entre todos. As obras dos escritores são o produto do seu tempo e retirar as obras do contexto atualizando-as de acordo com as morais vigentes é alterar a história.

Vamos retirar as referências aos judeus antes da segunda guerra? Então porque existiu a segunda guerra se afinal todos gostavam de todos?

Não nos podemos esquecer que já vivemos uma época de lápis azul (censura - para quem não conhece a história recente de Portugal) e que Hitler mandou queimar livros e não foi assim há tanto tempo!!

Querem reescrever a história? Não se pode fazer isso!


Prof.ª Cristina Guerreiro

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